Como escreviver?

       

      Parece uma palavra nova (ou mesmo diferente), mas a prática é tão comum que chega a surpreender quando descobrimos que o que nós, pretos (tanto indivíduos quanto coletivo) fazemos, queremos fazer ou, por algum motivo, deixamos de fazer é escreviver. Eu prometo que não vou buscar citações de teóricos ou de pensadores sobre o significado dessa palavra. Não quero transformar esse texto em um trabalho acadêmico com uma linguagem de difícil acesso e compreensão para muitas pessoas que escrevivem por si, por seus pares e ancestrais. Infelizmente, não só as produções em cima das vivências pretas são inacessíveis a indivíduos e grupos que cooperaram com o seu desenvolvimento, como as produções que visam legitimar esses lugares de fala enquanto sujeitos protagonistas de suas contações de histórias. Todavia, só uma menção é indispensável, a escritora Conceição Evaristo, que nos apresentou a palavra escrevivência. Ela publicou obras como Ponciá Vivêncio (2003), Becos da Memória (2006), Insubmissas Lágrimas de Mulheres (2011), Olhos D'água (2014) e muitas outras de grande prestígio nacional e internacional. Agora, o que seria escreviver? Bom, essa não é a pergunta chave do texto. A pergunta que nos interessa é: como escreviver?

      A resposta pode estar em algumas folhas rabiscadas do seu caderno de escola, em algumas postagens de desabafo em suas redes sociais, em mensagens trocadas com amigos, familiares e paixões frustradas, idealizadas e vivenciadas. A escrita sobre a sua experiência de vida enquanto preto, carregada de uma realidade única (indivíduo) no seu tempo, no seu local, nas suas culturas e nas suas lutas, e de uma realidade grupal (coletivo) que resiste há séculos contra o racismo, o genocídio e o apagamento de suas memórias, de suas histórias e de seus ancestrais, pode estar em um diário pessoal que você não deixa ninguém ler, em uma carta amassada e sem envelope, em um e-mail não respondido ou até na traseira de um boleto vencido. Onde o preto crava a sua letra, a sua história foi registrada. É possível dizer que todos os dias, pretos e pretas escrevivem por todos os cantos do país e do mundo. As escrevivências são versos curtos, romances longos, poesias de uma lauda, dramaturgias com várias cenas, roteiros, crônicas, contos, rimas, músicas, artigos e muitos outros escritos que se encontram por aí (organizados ou dispersos) nas gavetas, na internet e nos impressos publicados. No entanto, mesmo por saber onde posso encontrá-los, por que se ouve falar tão pouco dessas produções? Por que elas parecem tão invisíveis?

      Escreviver é mais do que contar a sua história, a sua experiência de vida, é também reafirmar o seu espaço, o seu local de fala e a sua legitimidade de falar por si, por seus pares, por suas memórias e por suas culturas. É desconstruir narrativas brancas, racistas e (neo)colonizadoras sobre as vidas pretas e as suas histórias por narrativas pretas, de seus próprios povos, de suas formas de enxergar o mundo e de (sobre)viver nele. Então, a luta não está apenas em ter o direito de escrever suas próprias palavras, mas em publicá-las e divulgá-las até ocuparem os espaços de discussão sobre os sujeitos pretos e as suas histórias. É ter as histórias pretas contadas por suas vozes e não por olhares brancos, como se fossem os únicos capazes de "reproduzi-las" para o universo literário e acadêmico. É ver os povos pretos sendo citados e referenciados através de seus próprios representantes. Ocupar uma prateleira de leitura é uma vitória que toda escrita preta suou para conquistar, pois muitas vezes o que sobra é o apagamento da borracha e as sujeiras do esquecimento. Como forma de contribuir para essas lutas, nós devemos ler, refletir, discutir e partilhar essas escrevivências. Para quem escrevive: por favor, não pare. Continue escrevivendo. Escreviva de todas as formas que você puder.

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